Falar de propósito em 2023 começa pelo desafio de responder a uma questão fundamental, antes das previsíveis “porque existimos” e “porque estamos aqui”: será este um conceito basilar ou uma frase elegantemente desenhada para citar em eventos corporativos?
Promover um debate sobre este tema foi particularmente interessante porque juntou novas interrogações às que lançámos como ponto de partida, para a co-construção do Corporate Code for Reputation Excellence. A resposta não é igual para todas as organizações e, mesmo para as que operam de acordo com este princípio, a vivência do propósito pode materializar-se de várias formas.
Assim, vamos resumir nas próximas linhas os desafios que nos foram apresentados por vários líderes, de diferentes setores de atividade, e as conclusões a que chegaram. Importa, nesta altura, fazer uma nota prévia: este debate é feito de convicções divergentes, onde não há certos nem errados.
O propósito nasce no dia zero ou pode (re)construir-se após vários anos de atividade?
As respostas dividem-se consoante o entendimento que se tem do conceito. Para quem vê o propósito como um decalque dos objetivos do negócio, este nasce assim que se coloca no mercado o primeiro produto ou serviço. O propósito da organização funde-se com o problema que pretende resolver aos seus stakeholders. De acordo com esta escola de pensamento, definir um propósito a meio da jornada trata-se de uma tentativa de romantizar um conceito que é eminentemente funcional, prático e indexado ao negócio.
Recorda-se da nota prévia? Vamos precisar dela para continuar. Numa perspetiva diferente, alguns líderes consideram que o propósito é dinâmico, assim como as empresas, e deve ser revisitado. Embora se espere conhecido e vivido a cada momento, é importante que se adeque à evolução da própria empresa e a influências externas, sobretudo relacionadas com o impacto que a organização pode ter no mundo e com o valor que está disposta a acrescentar, para além da sua atividade core. Deste ponto de vista, o produto que se vende não é o propósito, é uma ferramenta.
Em qualquer um dos casos, ter um propósito consistente e acionável parte de um exercício de ativismo interno, capaz de reunir toda a organização em torno de um princípio orientador (que pode ser comum ou individual). Uma pista que nos leva à próxima questão.
O propósito é um conceito agregador e comum a toda a organização ou individual?
Ambos e podem ou não coincidir. Vamos por partes: as empresas existem em função de um propósito que, como já vimos, orienta em primeira instância os objetivos do negócio. Mas é necessário que todos os colaboradores sejam guiados pelo mesmo farol? Os líderes ouvidos nesta reflexão divergem na resposta.
É indiscutível que toda a empresa precisa de um propósito e, desejavelmente, todos os colaboradores terão também o seu. O debate começa quando tentamos perceber se são sempre uma e a mesma coisa. Do lado do sim, os líderes referem a necessidade de construir um conceito unificador que reflita, não só os objetivos da empresa, como as motivações de todos os seus quadros. Um exercício bidirecional de escuta e partilha até se encontrar um ponto de entendimento entre a mensagem que a empresa pretende veicular e as expetativas do seu principal ativo.
Numa leitura mais pragmática do conceito, importa que os colaboradores conheçam o objetivo último da organização, por forma a contribuir para a sua concretização, mas o caminho pode passar por seguir o seu propósito individual, não necessariamente decalcado do da organização. Por outras palavras, a prosperidade da organização pode resultar da fusão de todos os propósitos individuais e não necessariamente de um propósito unificador.
“Tornar o mundo um lugar melhor” em vez do negócio ou através dele?
As lideranças de hoje enfrentam o desafio de acomodar ambas as pressões: a de mudar o mundo e a de assegurar resultados. Simplificando uma missão que tem tudo de complexa, o exercício passa por perceber de que forma podem as empresas tornar o mundo num lugar melhor e contribuir para um futuro promissor, do qual dependerá a sua própria prosperidade.
Chegámos, neste ponto, a outra encruzilhada: o facto de as empresas serem cada vez mais chamadas a cumprir esta missão comum tem despoletado uma onda de homogeneização de propósitos. Na teoria e na prática vão surgindo casos de organizações que apostaram todas as fichas no impacto e com isso descuraram os objetivos do próprio negócio. A pergunta que se levanta é: pode o propósito sobrepor-se à necessidade de apresentar resultados líquidos?
A formulação deste desafio será, por si só, polémica: para os líderes mais pragmáticos, deixar que o propósito comprometa os resultados é desde logo uma fragilidade da gestão. Por seu turno, os que defendem que nenhum negócio é maior que o seu compromisso com a comunidade dirão que este é um debate puramente economicista, que desvirtua o conceito. Assumindo o risco, mantemo-nos fiéis ao que prometemos no início: dar palco aos diferentes – bastante diferentes, nalguns casos – pontos de vista sobre o tema.
Perante este jogo de forças, como podem as empresas chegar a uma posição de equilíbrio que lhes permita garantir bons resultados financeiros e o impacto desejado no planeta e na sociedade? A resposta parece estar na capacidade de devolver ao planete e à sociedade por via da atividade core, otimizando o negócio de forma que acrescente valor enquanto mitiga, tanto quanto possível, os potenciais efeitos negativos.
Certo é que as empresas só existem quando a sociedade as aceita e integra, quando garantem algum retorno. É imperativo que assumam compromissos relativamente ao que querem melhorar, com a ressalva de que serão tão mais bem-sucedidas quanto mais essas causas se correlacionarem com o negócio.
O propósito impacta os resultados do negócio?
Independentemente da forma como se encara o conceito, é certo que o propósito só terá impacto nos resultados se for integrado no negócio e na dinâmica das empresas. Embora deva ser assegurado e consolidado pelas lideranças máximas e intermédias, o seu papel de força motriz só se cumpre se for claro para todos os colaboradores qual é o seu significado e de que forma se materializa na operação, nos desafios diários de cada um, na missão individual – uma tradução necessária do conceito em ações concretas. Quando bem-sucedida, esta estratégia é uma importante ferramenta de atração e retenção de talento, associada à noção crescente de que assegurar o bem-estar dos colaboradores é assegurar bons resultados. Saber para onde se vai e garantir condições de excelência vai necessariamente gerar resultados de excelência, participados por todos. Uma filosofia assente na ideia de que é preciso dar para receber, que é preciso ouvir, debater e recalcular a rota para que todos rumem na mesma direção.
Ajuda a este desígnio a capacidade de quantificar o propósito e indexá-lo a objetivos tangíveis, que podem estar ligados diretamente à operação ou à forma como impacta a comunidade. Como começámos por dizer, não há, neste processo, respostas certas e erradas desde que se procure, no caminho, um fio condutor desejavelmente mensurável.
É possível falar de propósito no terceiro setor?
Dir-se-á que no terceiro setor é onde encontramos, porventura, o propósito na sua forma mais pura, já que todos os esforços são dirigidos ao impacto. Nesta, como noutras matérias, as organizações sociais e o mundo corporativo podem inspirar-se mutuamente, já que ambos procuram o equilíbrio entre o investimento que fazem e o retorno que esperam.
No caso do terceiro setor, deve igualmente ambicionar-se um propósito que possa ser quantificável, seja pela via da inclusão, da capacitação ou da influência (à sociedade civil, aos organismos públicos ou às empresas).
Muitas são as organizações sociais que operam de acordo com modelos de gestão muito próximos de uma empresa tradicional, assentes em valores como a transparência, a partilha de responsabilidade, a tomada decisão (mais ou menos horizontal), a preocupação com o bem-estar dos colaboradores e, como já referimos, a ambição de um impacto objetivo, mensurável e cuja evolução se pode monitorizar.
Embora não tenha necessariamente desafios de cariz financeiro, nenhuma organização social prospera se não souber exatamente que problemas se propõe minimizar, junto de quem pretende intervir e de que recursos precisa para atingir esse fim. São, por isso, na essência, comuns as preocupações do terceiro setor e do mundo corporativo e arriscamo-nos dizer que as respostas poderão estar no mesmo conceito: o propósito.
Viver e comunicar o propósito de dentro para fora
Encerramos este exercício com a única constatação que reuniu consenso: seja qual for a abordagem, a vivência e comunicação do propósito começa por ser um trabalho dentro de portas. Seja funcional ou aspiracional, é ele que define uma organização, a razão pela qual existe e pela qual opera de determinada forma. Sem surpresa, os colaboradores são os primeiros a ser impactados por este conceito e pela forma como é vivido. São, também, os principais embaixadores junto de clientes, parceiros e toda a cadeia de valor, se o exercício partir de dentro e for genuinamente orientador.
Concluímos como começámos: há que saber responder às questões “porque existimos?” e “porque que fazemos o que fazemos?”, mas de nada serve conhecer a intenção se a mesma não for concretizada. Do ponto de vista reputacional, mais grave do que não ter um propósito claro é ter um que não é vivido nem materializado, que não esclarece os stakeholders em relação ao que podem esperar de determinada companhia.
Em suma…
- Conhecer e viver o propósito deviam ser tarefas indissociáveis.
- Cabe às lideranças acreditar e disseminar o propósito. Se os líderes não acreditarem, quem vai acreditar?
- Propósito da empresa e de cada um dos seus colaboradores pode coexistir pacificamente.
- É fundamental torná-lo tangível, materializado na operação, monitorizável.
- O propósito será tão mais eficaz quanto mais alinhado estiver com o negócio.
- O propósito pode ser estático ou revisitado.
- Ainda que surjam cada vez mais evidências de que um propósito claro, mobilizador e preocupado com toda a cadeia de valor é altamente recompensado pelos resultados financeiros, o tema não é consensual entre os gestores portugueses ouvidos neste grupo de trabalho. É, ainda, visto e interpretado como um conceito mais ou menos esotérico, cujo valor está por provar.
- Para as empresas que ainda não encontraram o seu propósito, é possível que o mercado as force a desenvolvê-lo e trazer algo de diferenciador. As exceções parecem ser os negócios eminentemente utilitários, de quem só se espera que vendam os produtos ou serviços a que se propõem. Nestes casos parece ser possível – por enquanto – operar sem um propósito que vá para além do negócio, se o seu portfólio for altamente valorizado e validado por uma extensa percentagem de consumidores.
- Antecipando o futuro, as empresas mais prósperas serão as que fizerem esta leitura sem falhas: é ou não decisivo que o meu negócio tenha um propósito? E, se a resposta for afirmativa, que seja desenhado e implementado o mais rápido possível.