Por estes dias, a invasão da Ucrânia pela Rússia domina a agenda ocidental e o combate está longe de se resumir a ataques bélicos e contra-ataques diplomáticos. Em 2022, a guerra também é digital e pública: discursos e negociações decisivos acontecem por videoconferência, nas redes sociais organizam-se movimentos de apoio e pressionam-se as autoridades competentes, na dark web organizam-se ciberataques dos dois lados da barricada ou vindos de guerrilheiros sem bandeira e as fake news assumem proporções de tal forma assustadoras, que dificultam a tarefa de distinguir verdade da mentira.
Esta será, provavelmente, a primeira vez que o velho continente assiste, em direto e em vários suportes, a um conflito com significativas implicações geopolíticas, económicas e humanitárias – um contexto que tem dado à sociedade civil motivos e ferramentas para exigir responsabilidades a organizações internacionais, atores políticos e, sem surpresa, ao mundo corporativo.
As empresas dividem-se, por estes dias, em 3 grupos: as que continuam a sua comunicação habitual sem nenhuma referência ao conflito; as que manifestam a sua solidariedade para com a Ucrânia e os seus cidadãos e as que tomam medidas para, à sua escala, influenciarem o rumo da história. Agora, mais do que nunca, o posicionamento de uma empresa é indissociável do posicionamento do seu líder e os exemplos de CEO ativista multiplicam-se, um pouco por todo o mundo, à medida que se somam novos dias ao confronto. O período que vivemos é o exemplo claro de que permanecer em silêncio pode ser lido como uma forma de conivência e nenhuma insígnia encontra vantagens na associação – direta ou indireta – a uma guerra ou a uma tomada de posição tardia.
Este movimento seria expectável se pensarmos que os stakeholders procuram cada vez mais estabelecer, com as marcas, relações com significado e fundadas em valores comuns. Eis a prova de fogo: estarão as empresas dispostas a operar de acordo com o seu propósito e a tomar partido, sabendo que essas decisões terão implicações económicas sérias? Estarão as empresas empenhadas em merecer a confiança dos seus grupos de interesse, mesmo que o preço a pagar seja a perda de competitividade e a redefinição das suas relações comerciais? Sair ou não sair da Rússia: qual o preço de cada uma das opções? Se a saída se paga em dólares, ficar tem um custo muito maior e a divisa são danos reputacionais graves e globais. Um custo que, a longo prazo, voltará a ser convertido em moeda tangível e elevado a uma potência desconhecida.
O Reputation Circle procurou resposta a estas questões, junto de 66 gestores portugueses, e as conclusões não se fizeram esperar: para 69,1% dos inquiridos, as empresas que decidiram sair da Rússia fizeram-no em defesa da sua reputação, mais do que por um imperativo ético: um ponto de partida que espelha a importância deste ativo intangível, particularmente em resposta a uma crise. Num momento absolutamente definidor como o que vivemos, as empresas preferiram sacrificar valores económicos à sua reputação. Ou devemos dizer sacrificar o presente para preservar o futuro?
É nesta lógica perversa que se esconde o verdadeiro desafio para o mundo corporativo. Num contexto de instabilidade e pressão internacional, as empresas são obrigadas a escolher o que perder, para não perder tudo. Aqui chegados, importa dar alguma atenção aos detalhes. Do ponto de vista funcional, deslocalizar uma empresa de serviços é substancialmente mais simples do que fechar uma operação de retalho, mas façamos agora esta leitura pela lente do Governance: que impacto tem a decisão nos colaboradores? E no desenrolar do conflito? As sanções e boicotes económicos estão a atingir um alvo institucional ou toda a população russa indiscriminadamente? Sair do país pode representar um risco maior do que ficar, para alguns setores? Estará a opinião pública disposta a tolerar, por exemplo, a saída de farmacêuticas ou da indústria alimentar, sabendo que essa movimentação vai colocar vidas em risco? Penalizar a população russa como forma de pressionar o Governo é legítimo?
O que está, afinal, em causa é uma discussão ética e moral associada a valores económicos: as organizações são convocadas a esclarecer se vão ter lucro ao permanecer na Rússia e se os impostos que pagam no país vão ou não financiar o esforço de guerra. Trata-se de um retorno legítimo, que visa responder a necessidades emergentes, ou é puramente economicista? Será possível infligir dano económico sem consequências sociais? As perguntas multiplicam-se, mas as respostas, essas ainda estão a ser escritas em território ucraniano e por mares nunca antes navegados.
O ponto de viragem na reputação dos países e dos seus líderes
Por esta altura, está ainda por apurar o impacto de algumas zonas cinzentas na reputação das empresas, mas no que se refere à reputação dos países a resposta parece chegar com grande assertividade. Segundo 77,3% dos inquiridos no survey promovido pelo Reputation Circle, o país que mais se destaca na resposta ao conflito, logo depois da Ucrânia, é a Polónia. Uma afirmação que, em fevereiro deste ano, teria parecido retirada de um qualquer romance rebuscado, já que o país é frequentemente alvo de críticas relacionadas com a violação de Direitos Humanos ou tentativas de silenciar a imprensa. A mudança de perceção é, por estes dias, ilustrada com as imagens que nos chegam das fronteiras com a Ucrânia, revelando uma resposta imediata e efetiva no acolhimento de refugiados – 2,3 milhões desde o início do conflito, segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas.
França também mereceu destaque por parte de 34,9% inquiridos, sobretudo pelo papel que tem desempenhado nas negociações de paz e na proteção de civis, com propostas como a criação de corredores humanitários. No pódio houve ainda espaço para a intervenção da União Europeia na mediação do conflito, assinalada por 35,8% dos gestores, e por oposição às vozes que acusam o velho continente de se esconder atrás da diplomacia.
Sem surpresa, esta avaliação lança pistas sobre os líderes que mais têm impressionado os gestores em Portugal. Ursula von der Leyen (47,8%) e Emmanuel Macron (41,8%) surgem destacados entre algumas figuras ocidentais, numa perceção que se divide entre o seu desempenho individual e a influência das instituições que representam. De resto, está ainda por apurar o impacto do conflito nas eleições presidenciais francesas: terá Macron conseguido desgastar a oposição de Le Pen, alegadamente financiada pelo Kremlin de Putin?
Não obstante, a atualidade parece ter encontrado um sinónimo para a palavra liderança: Volodymyr Zelensky (91,2%). Por entre todos os fatores que se esperavam imprevisíveis neste conflito, a ascensão do presidente ucraniano ocupa categoricamente o topo da lista. De ilustre desconhecido a case study internacional, o fenómeno Zelensky tem provado estar à altura de um desafio que, para além de político e estratégico, é um exigente exercício de comunicação. A agilidade com que se movimenta na comunidade internacional, o equilíbrio difícil entre a assertividade e a emoção nos seus discursos, a presença consistente em todos os meios e a acutilância com que desafia o mundo a responder serão, certamente, lições a figurar nos livros de História do futuro. Um exemplo prático, e mais doloroso do que seria desejável, que atesta a importância da reputação na construção de uma imagem sólida e digna de merecer o benefício da dúvida, por mais exigente que seja a missão.
Na guerra corporativa já há vencedores e vencidos
Poucos se arriscam a prever quem vai ganhar a guerra no terreno mas, nas empresas, o desfecho é já muito claro: ganharam todas as que abraçaram o ativismo com agilidade, transparência e consistência.
Um pouco por todo o mundo surgem exemplos de organizações e líderes que se posicionaram ao soar das primeiras sirenes. Em fevereiro, como agora, todos os passos terão sido toldados pela dúvida, mas norteados por uma certeza maior: este é o momento de provar aos stakeholders que o propósito vive fora da moldura. Que é acionável e suficientemente sólido para suportar decisões estruturais, com impactos financeiros imediatos e de longo prazo.
Os vencedores desta batalha têm em comum a rapidez na resposta, a comunicação assertiva e frequente e a transparência. Uma fórmula eficaz que tem merecido a admiração da opinião pública e o respeito pela vulnerabilidade de todos os que ousaram ser proativos.
Menos animador será o futuro das empresas que esperavam passar pelo conflito sem serem notadas. Por força dessa convicção, a resposta ao repto foi tardia e desencadeada pela pressão internacional – um duro e duplo golpe na sua reputação que não será esquecido pelos stakeholders.
A atual conjuntura veio relembrar empresas, países e líderes que todas as ações têm consequências, umas mais previsíveis que outras. “Fazer-se de morto”, que começou por parecer uma boa estratégia, está agora perigosamente perto de se tornar realidade. Por calcular fica o preço do silêncio, mas sabemos à partida ser elevado.
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Trabalho de campo realizado pelo Reputation Circle, Centro de conhecimento para a reputação corporativa da Lift Consulting.