“Casos de assédio nas empresas podem ser graves para a reputação”
Os casos de assédio sexual a envolverem figuras públicas, especialmente do mundo do cinema e da política, fizeram manchetes e abriram telejornais. Para além de todo o “voyeurismo” que suscitaram em vastas audiências, estes casos tiveram também o condão de despertar o debate sobre uma realidade há muito existente no quotidiano de milhares de pessoas anónimas, nomeadamente em ambiente laboral, onde diversas formas de assédio estão presentes e passaram, em boa hora, a ser criminalizadas.
Em Portugal, desde 2017, está expressamente proibida a prática de assédio em ambiente de trabalho. Mas qual é a realidade vivida nas nossas empresas? É disso que nos fala a advogada Carmo Sousa Machado, especialista em Direito do Trabalho da Abreu Advogados, para quem a legislação publicada veio ajudar a trazer à luz do dia um crescente número de casos de assédio laboral, embora numa percentagem inferior à verificada noutros países, porque os portugueses ainda sentem alguma relutância em queixar-se.
Mas uma coisa é certa: os casos de assédio revelam-se potencialmente graves para a reputação das empresas envolvidas, o que deve determinar um especial cuidado de prevenção por parte das organizações.
Fomos ouvir quem sabe…
Rep.Circle: O que é, afinal, o assédio?
Carmo Sousa Machado: O assédio não é mais do que um comportamento indesejado que alguém tem relativamente a outra pessoa com o intuito de constranger, humilhar, ofender e, no fundo, limitar a sua maneira de estar e de agir no ambiente em que isto se passa.
RC: Que formas pode assumir?
CSM: O assédio pode surgir em diversos contextos, não apenas em contexto laboral. Temos o vulgarmente chamado assédio moral, que é a versão mais transversal da situação do assédio, e o assédio sexual; qualquer uma destas formas de assédio pode ocorrer – e ocorre – em contexto laboral.
RC: Se pensarmos na lei laboral, como é que esse comportamento, na legislação portuguesa, é caracterizado para ser punido?
CSM: Desde 2017, está expressamente proibida a prática de assédio em ambiente de trabalho. E isto aplica-se não só aos superiores hierárquicos, mas também aos colegas de trabalho e aos restantes stakeholders. Ou seja, eu empregador, tenho que garantir que o fornecedor não vai ter nenhum comportamento de assédio relativamente aos meus colaboradores. Essa responsabilidade é minha enquanto empregador.
A prática de assédio determina uma contraordenação grave. Isso significa que o empregador tem mesmo de ter atenção e cumprir determinadas obrigações se, por acaso, tiver suspeita de algum comportamento de assédio. Passou a estar expressamente prevista a obrigatoriedade de instauração de procedimento disciplinar sempre que há suspeita ou denúncia de uma situação de assédio. Não promover um procedimento disciplinar também constitui uma contraordenação grave. Isto pode resultar em perdas financeiras significativas porque o valor das contraordenações varia em função do volume de negócios da empresa e varia também em função de estarmos perante uma situação de dolo ou negligência.
A importância do código de conduta
RC: Pode dar-nos alguns exemplos de comportamentos de assédio?
CSM: Há variadíssimos casos. Indico alguns:
– Repreender recorrentemente alguém, não de forma recatada, mas em público e à frente de colegas;
– Impor objetivos completamente inatingíveis ou irrealistas;
– Impor prazos irrealistas para aquilo que está a ser pedido;
– Mudar o colaborador de lugar de trabalho, isolando-o ou pondo-o num ambiente que possa ser hostil.
Tudo isto, isoladamente, pode não representar assédio. O que temos de analisar é se aquele comportamento, daquela forma, com aquela repetição, tem ou não tem por trás uma situação de assédio. Esse tipo de comportamento tem muitas vezes subjacente que a corda quebre para o lado mais fraco e o trabalhador desista e deixe a empresa.
Com a legislação de 2017, passou a ser obrigatório que as empresas com sete ou mais trabalhadores implementem um código de conduta e, se aplicável, tem de ser provado que esse código foi comunicado aos trabalhadores. Tem, ainda, de haver canais de denúncia, anónimos ou não, para o colaborador poder denunciar a situação.
RC: Na sua opinião, esta alteração legislativa garante melhores práticas nas empresas?
CSM: Não, nada garante nada. A par de educação, precisamos que haja fiscalização desse incumprimento porque se tivermos leis cujo cumprimento não seja fiscalizado, podem valer de muito pouco. Importa, contudo, dizer que, desde que a lei entrou em vigor se tem assistido à instauração de uma série de processos disciplinares por motivo de assédio, o que até então não acontecia.
Isto não refletirá o que se passa nas empresas, mas é um princípio e sinto essa mudança.
RC: Ainda há receio de sofrer represálias ao denunciar uma situação de assédio?
CSM: Sim, há. Foram introduzidas algumas disposições importantes para o evitar. Se, por exemplo, alguém for objeto de uma sanção disciplinar por se ter queixado de uma situação de assédio, considera-se que essa sanção é abusiva. E alguém que seja despedido ou a quem seja aplicada uma sanção disciplinar por alegada infração disciplinar no ano seguinte a ter exercido os seus direitos em (entre outras) matéria de assédio goza também de proteção, presumindo-se esse despedimento ou sanção disciplinar abusiva. Compete ao empregador demonstrar que não é uma retaliação.
Este ano passou ainda a estar expressamente previsto como justa causa de resolução de contrato de trabalho por parte do trabalhador o ser vítima de assédio. Ou seja, o trabalhador que seja vítima de assédio pode rescindir o seu contrato de trabalho alegando justa causa e, demonstrando essa justa causa, tem direito a ser indemnizado pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que tenha sofrido.
Portanto há uma série de mecanismos, hoje em dia, que ajudam a que as pessoas não tenham tanto receio de se queixar e de sofrer represálias.
A pedagogia do exemplo
RC: Que sugestões gostaria de deixar às empresas para evitar estes processos?
CSM: Temos todos de dar o exemplo, especialmente quem está no topo da cadeia hierárquica.
A maneira como falo com a minha secretária, por exemplo. Se falar aos gritos ou a maltratar, os colegas mais novos vão achar que é normal e é aceitável. Se, pelo contrário, assistirem a alguém que não levanta a voz, mantém a calma em situações de stress, dá o exemplo, não permite que determinadas situações ocorram, é um bom começo. O importante é que consigamos transmitir à nossa equipa os valores da empresa. E a comunicação tem de ser feita, seja em encontros regulares, na intranet ou na fase de acolhimento. Outro imperativo é ter chefias com a capacidade de tomar decisões difíceis e assertivas mas de forma correta.
RC: Segundo alguns dados recentes, Portugal é dos países que tem menos casos denunciados.
CSM: O que não quer dizer que não existam. Quer apenas dizer que não nos queixamos.
RC: Isso não traz um certo sentimento de impunidade às empresas?
CSM: Sim, pode trazer. Mas penso que as coisas estão a mudar. Tem a ver com a nossa cultura. Não somos pessoas de nos queixar muito, somos pessoas de aguentar, andar para a frente e atirar para trás das costas.
RC: Quando esses casos se tornam conhecidos, existem danos para a reputação das empresas?
CSM: Sem dúvida há potencialmente uma consequência grave para a empresa em termos da sua reputação.
Se tiver de escolher entre duas marcas em que numa sei que só há homens promovidos ou há situações de assédio moral ou sexual, não vou comprar essa marca, escolho outra.
E o consumidor, atualmente, tem isto muito presente. Sem falar, claro, do poder que as redes sociais têm. Temos de ter o cuidado de não nos pôr a jeito.
RC: Foram amplamente conhecidas as denuncias de assédio no mundo do cinema. Em Portugal, o que podemos aprender com a acusação à Eurodeputada Maria João Rodrigues sobre o comportamento para com a sua assistente parlamentar?
CSM: Desconheço os contornos do caso para além do que veio a público. As diferenças culturais às vezes explicam situações de fronteira em que não houve intenção de, em que algum comportamento é normal ou culturalmente aceite no país de origem e tem uma interpretação completamente diferente num destinatário de outro país. Mas uma coisa dou como certa, alguém que decide queixar-se de assédio por parte de uma figura pública não o faz se não estiver absolutamente seguro e documentado que algo de anormal aconteceu.
RC: No entanto, a eurodeputada teve apenas uma reprimenda…
CSM: Como disse não conheço os contornos do caso, não sei se terá sido, de facto, uma situação de assédio porque (para o ser) para além de existir um comportamento indesejado, tem de haver um repetição e duração de conduta. Por exemplo, o Supremo Tribunal Justiça português não tem valorizado tanto a intenção; valoriza mais a prática e a consequência. Isto ajuda as pessoas que queiram queixar-se.
RC: A queixa, a denuncia de assédio, pode ter custos para o colaborador?
CSM: Quando o colaborador se queixa à entidade empregadora, esta tem obrigação de promover um processo disciplinar e esses custos correm por sua conta.
O colaborador poderá ter custos (com a contratação de um advogado e com a taxa de justiça) se decidir acionar judicialmente a sua entidade empregadora, exigindo-lhe, por exemplo, o pagamento de uma compensação pelos danos sofridos. Mas há situações em que pode pedir a dispensa desses custos ou a nomeação de um advogado à Ordem dos Advogados ou o patrocínio por parte do Ministério Público.
Está previsto, também, desde 2017, que os custos inerentes às doenças sofridas como consequência de situações de assédio são da responsabilidade do empregador. Tal significa que a vulgarmente conhecida baixa é paga pela segurança social, mas, à posteriori, esta entidade pode e deve reclamar o valor pago ao empregador.
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