A Google, que desde o início liderou as tropas na tendência de criar uma cultura de trabalho mais inovadora e divertida, parece ter abandonado a marcha.
O gigante tecnológico é reconhecido, desde os seus primórdios, pela sua cultura idiossincrática liberal e pouco convencional. E foi precisamente à luz destas características que a Google se tornou tão atrativa para o talento. No entanto, nos últimos meses, face ao crescimento exponencial, a organização tem protagonizado várias polémicas que põem em causa a sua capacidade de reter colaboradores. A ausência de regras está, gradualmente, a dar lugar à rigidez do controlo.
Sendo cada vez mais óbvia a mudança estratégica da empresa, com contornos hierárquicos e burocráticos cada vez mais definidos, surge a dúvida: será que a Google como a conhecemos vai sobreviver? Continuará a ser um employer of choice, um íman para atrair e reter o talento mais criativo e inovador? E quais são as consequências de uma mudança de posicionamento e modelo organizacional?
Clarificar o óbvio
O clima organizacional de uma empresa assume-se como o conjunto de características que a torna única perante outra, exprimindo-se através de máximas e hábitos comuns aos seus colaboradores. Com efeito, é a cultura de uma organização que alimenta os valores e o propósito diário de cada um dos seus membros.
Ainda que o posicionamento corporativo esteja em constante formação e aperfeiçoamento, essas mensagens devem ser transmitidas e reforçadas ininterruptamente, tanto para dentro, como para fora.
Para Sónia Nunes, responsável pela People Team da Mercer Portugal, é precisamente na comunicação que reside o maior desafio para as empresas. Na opinião da gestora de recursos humanos, o risco surge quando existe inconsistência entre a mensagem e a vivência dentro da própria organização. Esta lacuna causa, na maioria dos casos, descredibilidade, desconfiança e desconexão.
“Quando uma organização procura comunicar a sua proposta de valor para fora, tem de ser cautelosa com as ‘bandeiras’ que usa, porque é importante que estas ressoem, acima de tudo, internamente”, reitera.
Ainda que haja uma componente aspiracional nesta comunicação, a ambição deve ser doseada para que nenhuma expectativa seja defraudada. E quando existe uma reorientação do posicionamento da empresa, há que esclarecer internamente o propósito da mudança.
No caso da Google, por exemplo, onde existia uma postura reconhecida pela flexibilidade, transitar para um regime espartano pode dar origem a um motim.
“À partida, a Google atrai espíritos livres e, de repente, com esta mudança, estão asfixiados. Quando uma organização quer fazer uma mudança tem de perceber primeiro se as pessoas estão preparadas para ela. É frequente a liderança fazer mudanças sem envolver as pessoas nesse processo, sem esclarecer o propósito, por achar que é óbvio. Não entender nem estar pronto para acompanhar a mudança de uma empresa, pode romper relações e, no limite, tal como aconteceu na Google, provocar a saída de colaboradores.”
Por outras palavras, Sónia Nunes aconselha: “a primeira regra é clarificar o óbvio, sempre”.
Cabe às organizações comunicar a sua proposta de valor de forma clara e genuína. Este é, efetivamente, um caminho a percorrer pela liderança e pelos colaboradores, em uníssono.
Encontrar o equilíbrio
O ambiente de evolução e transformação que se vive em qualquer organização pode, muitas vezes, desencadear posições extremistas que, no limite, podem comprometer o negócio.
Assim, depois de clarificado o óbvio, o segredo é encontrar o ponto de equilíbrio entre a total liberdade e o controlo absoluto, revela Sónia Nunes.
Não há estruturas organizacionais perfeitas, pelo que haverá sempre um preço a pagar pelas limitações de cada uma. A liberdade de ação – e o empoderamento a ela associado – costumava ser condição sine qua non de um colaborador Google. Mas tal como esse modelo tem um custo, passar para o lado oposto do espetro também tem as suas limitações. Alterar os hábitos e a rotina de um colosso tecnológico como a Google afeta os colaboradores como se de uma mudança de ADN se tratasse. “As pessoas sentem-se castradas”, diz Sónia Nunes. Menos liberdade de expressão resulta, inevitavelmente, numa alteração ao epicentro da criatividade.
“No limite, pode deixar de ser a Google que conhecemos, de ser tão inovadora e tão disruptiva.”
O desafio de equilibrar uma estrutura rígida com a liberdade e a fluidez que a criatividade requer é um dilema que dificilmente será ultrapassado por uma equipa de gestão pouco observadora. “Se a chefia tiver uma personalidade autocrática, provavelmente não será capaz de reconhecer que extremar posições vai acabar por quebrar a organização. Contudo, se houver abertura de mente, é possível que os danos sejam contidos.”
Sobreviver à guerra de talento
Com um clima organizacional em crise, a Google tem em mãos uma tarefa titânica. Em circunstâncias transitórias, como é o caso, Sónia Nunes frisa a importância de adotar uma máxima apelativa: “Quando as nossas bandeiras mudam, temos de as substituir rapidamente por outras que também possam ter poder convocatório.”
Ainda que o desafio da atração e da retenção de talento seja, atualmente, um fenómeno generalizado, na indústria tecnológica a situação agrava-se. Para sobreviver a esta guerra, as empresas, cada vez mais expostas, têm de se preocupar com a sua identidade, posicionamento e reputação. Os potenciais colaboradores querem saber o que uma organização lhes pode oferecer tanto a eles, como indivíduos, como também ao mundo e à comunidade onde se insere. É, portanto, de suma importância que as empresas compreendam a necessidade de uma comunicação reforçada sobre aquilo que são, fazem e podem oferecer.
“A resposta passa pela experiência que conseguimos proporcionar cá dentro e como a comunicamos lá fora. Atendendo ao que o talento quer hoje, vai ser difícil atrair pessoas com uma abordagem convencional. A Google, tal como qualquer empresa, tem de adaptar o seu discurso à bandeira que quer adotar.”
Na prática, o que fazer? Gerir a guerra em diferentes frentes pode rapidamente tornar-se uma tarefa esmagadora. Para Sónia Nunes, há três princípios basilares que qualquer empresa pode seguir.
- Definir objetivos claros
Antes de tudo, a organização deve definir metas e expetativas razoáveis. Ao definir uma taxa de rotatividade razoável, a organização parte do princípio de que as pessoas querem ter várias experiências ao longo do seu percurso. Considerar essa tendência já é, por si só, um ponto de partida no ajuste de expetativas. Uma empresa não pode esperar reter pessoas muito mais tempo do que “isto”. E o “isto” depende do setor e do tipo de talento que se tenta atrair.
Definir, consoante as variáveis, o que é razoável e lutar por isso – não procurar o inatingível.
- Conhecer o target
Depois de definidas as metas, há que conhecer muito bem o target. Torna-se imperativo responder à pergunta: qual é o talento que procura e onde o pode encontrar?
Identificar os targets estratégicos. Está claro o tipo de personagem que se quer? Quais são as escolas de onde sai e as empresas onde está?
- Fit com a cultura
Por fim, para além de se preocupar com as competências técnicas, uma organização deve procurar no seu talento o fit com a cultura. A inteligência emocional de um candidato e o seu alinhamento com o propósito da empresa é, em regra, um fator decisivo. Tal como versa o conhecido mantra corporativo, “as empresas contratam as pessoas pelas suas competências técnicas e demitem-nas pelas comportamentais”.
A receita parece fácil, mas até os maiores e melhores falham. À tríade do talento certo, convém não esquecer uma forte, transparente e envolvente comunicação interna. Porque, como bem lembra Peter Drucker, “60% de todos os problemas de gestão são o resultado de uma má comunicação.”